Moldura do cotidiano, por Delma P. Martins

 Ontem de manhã meus vizinhos que viviam em cima de mim se mudaram. Estranhei o arrastar de móveis logo cedo. Depois do café da manhã, observei o homem que olhava o celular no outro lado da rua. Vi depois que era um dos carregadores de mudança: um caminhão baú com as portas abertas estava sobre a calçada, em frente ao meu prédio.


Nunca vi os rostos dos meus vizinhos. Posso até ter cruzado com um deles no elevador, mas não sei quem são. Minto em dizer que não conhecia nenhum rosto. Sei do gato de pelo branco que tomava sol na janela. Nas minhas saídas para caminhar sempre o via quando atravessava a rua e lançava um olhar na direção do apartamento. Um amigo, que um dia me visitou da rua, me olhando pela janela por causa das restrições sanitárias, me advertiu divertidamente que tinha um bichano em cima de mim. Vez ou outra achava um pelo dele nos vasos das minhas suculentas que, como o gato, adoram tomar sol na janela.

Do casal, que imagino ser um homem e uma mulher bem jovens, conheço apenas as vozes e hoje de manhã senti falta de ouví-los. No isolamento, nesses tempos de pandemia, eles passaram a fazer parte da minha rotina. Da cozinha ou banheiro, cômodos que possuem basculantes que dão para uma área vazada em comum, ouvia o abrir do chuveiro, e o som do microondas. Entreouvi também algumas DRs, a sigla para a discussão de relação de um casal,  e também as brigas de cada um deles  com o gato, que vez ou outra aprontava. Entreouvi risadas, delicadezas de um com o outro, e deles com o gato; ouvi cantos acompanhando músicas, e as conversas em inglês que o moço tinha todas as manhãs. Fantasio que fosse o trabalho dele, em home office. No Carnaval receberam amigos, o que não é recomendável nesses tempos de covid, mas confesso que me diverti com o astral das conversas, brincadeiras e os sons ecléticos que vinham de lá.

Não moraram muito tempo no prédio. Pouco depois de se mudarem instalaram um ar condicionado em cima do meu. Pedi ao porteiro que os avisasse que os pingos de água estavam caindo sobre o meu aparelho. Resolveram o problema no mesmo dia, sem nenhuma reclamação ou estresse. Ontem, depois de alguns minutos, voltei à janela e vi um ar condicionado dentro do caminhão. Olhei  para o alto e o ar condicionado não estava lá. Eles estavam mesmo partindo. Desejei que o gato se adapte bem ao novo endereço e tenha uma janela  para se refastelar. Que os três sigam juntos, tenham saúde  e a felicidade possível; onde estiverem.

Comentários

  1. Uma bela crônica para a compreensão desses nossos dias de isolamento social. Agora temos tempo até para perceber a falta daqueles que não convivemos diretamente ou simplesmente das vozes, dos sons e daquele gato que nunca tocamos. Um tempo para nos observar.

    ResponderExcluir
  2. Eu também acompanho de longe há muito tempo movimento de alguns vizinhos de prédios próximos. Vi crianças nascerem e crescerem, tão perto e tão longe de mim. Cenas do cotidiano. Adorei a crônica, adoro seus textos e adoro você, amiga muito querida.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Também te adoro, Lucília!
      Temos aqueles conhecidos de vista. Outro dia encontrei uma moradora do bairro e não resisti. Contei que lembro dela grávida e que o filho está enorme. Ela sorriu surpresa.😉

      Excluir
  3. Este período conturbado pelo qual estamos passando, de alguma forma está servindo para aguçar a nossa sensibilidade. Certamente por um bom tempo você ainda vai sentir falta dessas vozes e também do gato branco, que marcava presença, deixando seus pelos nas suas suculentas. Todos nós estamos interligados de alguma forma com as pessoas que fazem parte do nosso cotidiano, mesmo que seja ouvindo somente suas vozes. Que novos vizinhos sejam bem vindos, que novas vozes possam continuar te trazendo o despertar da vida em cada amanhecer. Parabéns pelo emocionante texto!

    ResponderExcluir
  4. Adorei! Deve ter sido uma delícia esse exercício de fantasiar como são as pessoas que estavam tão perto de você sem vê-las. Dar asas à imaginação é sempre bom! Beijos!

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas